21 dezembro, 2022

É PROIBIDO SAPATEAR NO CORAÇÃO DE UM HOMEM BOM



Salivar uns versos 

no teu pau-poema. 


Soluçar louvores

suspirar delírios. 


Espreitar na fresta

entre as palavras 

e as estrelas


e entrar descalça

sem força, sem forma 

pisando com as mãos.

RECEITA PARA ATRAVESSAR DESERTO

 

Primeiro escolher uma estrela 

e conversar com ela. 

Aprender com a atenção de 

quem flutua. 

Sentir o que ela diz 

reverberando nos poros. 

Uma estrela, não precisa ser mais. 


Então, 

andar por onde andar

mas nem tanto.

Persistirá sempre uma dúvida

como a marca da insegurança

uma cicatriz 

desviando nosso olhar.

Cerrar os olhos, andar. 


Depois, perder. 

Esquecer as contas,

deixar os sapatos, 

romper os lacres,  

estrangular a dignidade.


Deixar que o deserto atravesse tudo.

E como não haverá chuva,

beber as próprias lágrimas

- sem desperdícios.


*Para o Repórter Guaibense

ODE AOS DISTRAÍDOS


Anunciaram nos outdoors

de toda a cidade 

que este ano 

a primavera não vinha.


Mas quem espalhou mesmo 

a notícia 

foi um vento frio.


Não parecia fakenews. 


Inventaram, depois,

que não chegaria nunca mais 

a primavera 

e se chegasse não vingava

e se vingasse não teria força suficiente 

para nos conduzir ao verão.

Ficaríamos nomeiodocaminho,

inclusive 

longe do mar 

e sem ver navios. 


*Para o Repórter Guaibense 

Disseram tudo quanto foi coisa

sobre o fim da primavera. 

Não havia mais dúvidas. 


Foi quando 

alguns desavisados 

avistaram a primeira flor.

CERTOS JARDINS

Certos jardins crescem a esmo

nas periferias das cidades

a despeito do abandono 

e da má reputação. 


Algumas plantas,

embrutecidas pelo mau tempo, 

adaptadas à paisagem 

de tijolo a vista, fios de luz e salpique, 

resistem 

e insistem 

na arquitetura da sobrevivência. 


Entre escombros e espinhos 

sob o sol 

afloram-se 

como se a primavera 

fosse uma promessa 

e não mais uma esperança.


Trazem consigo, como 

herança ou 

carma ou 

genética ou 

destino,

a força de quem 

enfrenta o deserto 

sem desertar de si.


*Para o Repórter Guaibense

24 agosto, 2022

QUANTO CABE UM CORPO D'ÁGUA?

 

Primeiro o corpo cabe 

na barriga de outro corpo

E vem ao mundo 

- quando, enfim, não cabe mais


Talvez a teta de uma mãe 

caiba na boca dele

E esse pequeno corpo

depois sem fome

caiba nos braços 

de uma avó

que embala...


Anos mais tarde 

e o corpo

talvez de menino

Um menino moreno 

com pés que correm 

e que cabem nas ruas de Guaíba 

e cabem na adolescência de uma periferia 

a fazer amizades e sorrisos

(dá pra ver pela foto)


Sim: é ele.

O corpo de menino moreno

gestado por uma mãe 

embalado por uma avó 

abraçado por tantos amigos 

coube seu nome de anjo 

nas chamadas das escolas onde estudou: Gabriel. 


Esse corpo de gente viva 

que nunca caberá em um açude.

É dele que vem o convite. 


*Gabriel Marques Cavalheiro, 18 anos, morador de Guaíba, desapareceu na semana passada após uma abordagem policial.

15 agosto, 2022

CORREIO SENTIMENTAL II

Mastigar tua tristeza
e triturá-la.
Aproveitar a força 
do ranger de dentes. 
Ruminar até
virar pó: 
pode-poema. 

CORREIO SENTIMENTAL I

Sobre aquela cena hipotética 

em que me perdias para

o cantor Jorge Drexler: 


Eu preferiria não. 

03 agosto, 2022

Se flor, se pássaro, se borboleta






Não fui eu quem plantou esta flor.

Quando a busquei ensejava consolar-me 

de mim, de ti, 

de nossas versões de calendário

todas já rotas, retas, sólidas. 


Nas primeiras semanas em que a cultivei 

Choveu muito

E ela se desandou em lágrimas 

E tons terrosos

e ficou azul

depois roxa

cianótica

cor de morte mesmo.


Pensei que não vingava,

mas tudo bem 

porque adubo 

também nutre.


Mas não. 


Algo desfez-se depois da chuva.

Veio brotando, desabrochando 

se refazendo mesmo 

E já nem sei mais 

Se flor

Se borboleta 

Se pássaro

Ou se somos nós.

05 julho, 2022

QUERIDO DIÁRIO

Hoje fiz a coisa

mais burguesa

a se fazer em

uma terça à tarde:

tirei o sono do atraso. 


Está decidido 

contra o capital 

minha vingança 

será dormida.



08 junho, 2022

DEPOIS ÁGUA

Primeiro a gente perde a vergonha. De existir, de andar no mundo, de falar em público, perde a vergonha de se emocionar, de sentir, como a criar um couro na cara, invencível despudor, o poder de emanar nossa presença. 

Depois de perder a vergonha, a gente perde medo. O assalto da coragem no primeiro passo, assim que de pronto firmamos em marcha, tomamos o rumo. Depois do medo a gente destrava, caminha, nem que seja pra fazer vento e sentir as cócegas de um futuro na barriga ou no pescoço de alguém.

Depois, água. 

UM POEMA PARA UM POETA

Conheci um homem 

que carregava consigo 

sua dignidade de menino.


Ele me contou 

que ainda jovem 

compreendeu o motivo da seda: carícia. 


Com duas mãos de orvalho 

tocou meus olhos de lágrima 


e veja bem: não doeu.


Depois, não sei: parece que engoli uma estrela. 


E entre um soluço e outro, 

ensaiam-se cócegas 

um sorriso

e a paz de quem espera. 



19 abril, 2022

14 março, 2022

O amor nos Tempos do Colera

Atravessamos juntos 

O abismo da saudade 

Pontes sobre o nada

Pela força da idade

Nos encontramos serenos

Despidos de mocidade

Nos habitamos a esmo, 

Repletos de intensidade

27 janeiro, 2022

ESPINOZA ENCONTRA O CAPITALISMO

 Acordar mais cedo 

Despertar com sorte 

Evitar a morte 

Para sustentar 


Acordar com medo 

Ir dormir mais cedo 

Inventar um sonho 

Para conservar 


Acordar pra morte 

Evitar a sorte 

Despertar do sonho 

Inventar AMAR


Acordar pra sorte 

De deitar cabelo 

Enfrentar o medo 

De se levantar 


E caminhar...

Caminhar.