Salivar uns versos
no teu pau-poema.
Soluçar louvores
suspirar delírios.
Espreitar na fresta
entre as palavras
e as estrelas
e entrar descalça
sem força, sem forma
pisando com as mãos.
Síncope, Versos Avulsos, O Sal das Coisas e Poemas de Amor
Salivar uns versos
no teu pau-poema.
Soluçar louvores
suspirar delírios.
Espreitar na fresta
entre as palavras
e as estrelas
e entrar descalça
sem força, sem forma
pisando com as mãos.
Primeiro escolher uma estrela
e conversar com ela.
Aprender com a atenção de
quem flutua.
Sentir o que ela diz
reverberando nos poros.
Uma estrela, não precisa ser mais.
Então,
andar por onde andar
mas nem tanto.
Persistirá sempre uma dúvida
como a marca da insegurança
uma cicatriz
desviando nosso olhar.
Cerrar os olhos, andar.
Depois, perder.
Esquecer as contas,
deixar os sapatos,
romper os lacres,
estrangular a dignidade.
Deixar que o deserto atravesse tudo.
E como não haverá chuva,
beber as próprias lágrimas
- sem desperdícios.
*Para o Repórter Guaibense
Anunciaram nos outdoors
de toda a cidade
que este ano
a primavera não vinha.
Mas quem espalhou mesmo
a notícia
foi um vento frio.
Não parecia fakenews.
Inventaram, depois,
que não chegaria nunca mais
a primavera
e se chegasse não vingava
e se vingasse não teria força suficiente
para nos conduzir ao verão.
Ficaríamos nomeiodocaminho,
inclusive
longe do mar
e sem ver navios.
*Para o Repórter Guaibense
Disseram tudo quanto foi coisa
sobre o fim da primavera.
Não havia mais dúvidas.
Foi quando
alguns desavisados
avistaram a primeira flor.
Certos jardins crescem a esmo
nas periferias das cidades
a despeito do abandono
e da má reputação.
Algumas plantas,
embrutecidas pelo mau tempo,
adaptadas à paisagem
de tijolo a vista, fios de luz e salpique,
resistem
e insistem
na arquitetura da sobrevivência.
Entre escombros e espinhos
sob o sol
afloram-se
como se a primavera
fosse uma promessa
e não mais uma esperança.
Trazem consigo, como
herança ou
carma ou
genética ou
destino,
a força de quem
enfrenta o deserto
sem desertar de si.
*Para o Repórter Guaibense
Primeiro o corpo cabe
na barriga de outro corpo
E vem ao mundo
- quando, enfim, não cabe mais
Talvez a teta de uma mãe
caiba na boca dele
E esse pequeno corpo
depois sem fome
caiba nos braços
de uma avó
que embala...
Anos mais tarde
e o corpo
talvez de menino
Um menino moreno
com pés que correm
e que cabem nas ruas de Guaíba
e cabem na adolescência de uma periferia
a fazer amizades e sorrisos
(dá pra ver pela foto)
Sim: é ele.
O corpo de menino moreno
gestado por uma mãe
embalado por uma avó
abraçado por tantos amigos
coube seu nome de anjo
nas chamadas das escolas onde estudou: Gabriel.
Esse corpo de gente viva
que nunca caberá em um açude.
É dele que vem o convite.
*Gabriel Marques Cavalheiro, 18 anos, morador de Guaíba, desapareceu na semana passada após uma abordagem policial.
Sobre aquela cena hipotética
em que me perdias para
o cantor Jorge Drexler:
Eu preferiria não.
Não fui eu quem plantou esta flor.
Quando a busquei ensejava consolar-me
de mim, de ti,
de nossas versões de calendário
todas já rotas, retas, sólidas.
Nas primeiras semanas em que a cultivei
Choveu muito
E ela se desandou em lágrimas
E tons terrosos
e ficou azul
depois roxa
cianótica
cor de morte mesmo.
Pensei que não vingava,
mas tudo bem
porque adubo
também nutre.
Mas não.
Algo desfez-se depois da chuva.
Veio brotando, desabrochando
se refazendo mesmo
E já nem sei mais
Se flor
Se borboleta
Se pássaro
Ou se somos nós.
Hoje fiz a coisa
mais burguesa
a se fazer em
uma terça à tarde:
tirei o sono do atraso.
Está decidido
contra o capital
minha vingança
será dormida.
Primeiro a gente perde a vergonha. De existir, de andar no mundo, de falar em público, perde a vergonha de se emocionar, de sentir, como a criar um couro na cara, invencível despudor, o poder de emanar nossa presença.
Depois de perder a vergonha, a gente perde medo. O assalto da coragem no primeiro passo, assim que de pronto firmamos em marcha, tomamos o rumo. Depois do medo a gente destrava, caminha, nem que seja pra fazer vento e sentir as cócegas de um futuro na barriga ou no pescoço de alguém.
Depois, água.
Conheci um homem
que carregava consigo
sua dignidade de menino.
Ele me contou
que ainda jovem
compreendeu o motivo da seda: carícia.
Com duas mãos de orvalho
tocou meus olhos de lágrima
e veja bem: não doeu.
Depois, não sei: parece que engoli uma estrela.
E entre um soluço e outro,
ensaiam-se cócegas
um sorriso
e a paz de quem espera.
MOTE PARA UM SAMBA CONTRA-OSTENTAÇÃO
Na roda gigante da vida
As vezes a volta é por baixo.
Atravessamos juntos
O abismo da saudade
Pontes sobre o nada
Pela força da idade
Nos encontramos serenos
Despidos de mocidade
Nos habitamos a esmo,
Repletos de intensidade
Acordar mais cedo
Despertar com sorte
Evitar a morte
Para sustentar
Acordar com medo
Ir dormir mais cedo
Inventar um sonho
Para conservar
Acordar pra morte
Evitar a sorte
Despertar do sonho
Inventar AMAR
Acordar pra sorte
De deitar cabelo
Enfrentar o medo
De se levantar
E caminhar...
Caminhar.