30 novembro, 2012

DA LAVAÇÃO



a água
que  prepara o corpo
prepara o espírito
e a comida

na panela
a água ferve
no corpo
a água esquece
e na alma
a água vê

A água
lava
leve
e leva
dos olhos
a lágrima
teimosa

28 novembro, 2012

Ocos do Acaso



Um grito percorre o cais

Abafado entre os navios
que esperam em vão
novas partidas
adentra o oco desvio
mastigando o aço
corroído pelo tempo

Sopra um vento, momento

Os anseios partem
Os navios ficam
E meu barco
despatriado
invade as águas
em busca da noite

Ainda é cedo
para a morte
do relento...


27 novembro, 2012

Casa Abandonada




A casa abandonada carrega em si
O estigma da vitória esquecida.

Entre os cômodos
Existem velhos incômodos
Que nem uma demão de cal
E quatros punhados de sal
Hão de iludir ou refrear

Fazer silêncio na casa abandonada
É como manter
Uma faca amolada
À espreita de intrusos

E há um gemido confuso
Um suspiro, talvez
Como um nó a sussurrar

Mas uma casa abandonada
Mais do que tudo
Merece sempre uma luz acesa
Um lampião, qualquer clareza
Que possa
A qualquer tempo
Nosso retorno guiar...



22 novembro, 2012

Desinspiração

Tempos de cuidados, tempos de desinspiração... Muitas vezes eu já morri nesta vida. E em todas elas eu sobreviví!

Contra todos os males, Quintana, o Poeta:

SONETO XVII

Da vez primeira que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada...
Arde um toco de vela amarelada...
Como o único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões de estrada!
Ah! desta mão, avaramente adunca,
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!

(Mário Quintana - A Rua dos Cataventos)

19 novembro, 2012

Ave-Maria Surfista



Eu não gosto de brincar na beira do mar
e acabo sempre nadando na arrebentação.

Por isso, vez que outra, volto sufocada, afogada...

As ondas quebram em meu rosto,
disfarçando as lágrimas
e abafando os gemidos chorosos
que, como uma velha canção de pescador,
teimam em arranhar meus seios
teimam em cozinhar-me

vivo em banho-maria.

Eu não gosto de brincar na beira do mar
e acabo sempre me arrebentando.

17 novembro, 2012

Da Procrastinação do Desejo



O meu desejo é como a força da manhã invadindo a madrugada
Deixando um rastro de luz e de espanto e de resistência por onde passa
Deixando os ébrios corpos à mercê da hora amanhecida
O meu desejo brinca de menina, de menino, de bandido
Não tem nada o meu desejo
Pois que gosta da verdade e escancara a voluptuosidade de cada olhar
O meu desejo morde a tua carne sem saber-se vegetal
Como um nó na garganta
O meu desejo é a salamandra que cura e fere
O meu desejo vem de longe
Muito antes do tempo de ter tempo
Vem de terras claras e mansas
Ganha corpo no teu cenho
E deságua na nascente da tua verdade
Mar infinito de desejos
Que a mim é dado com ausência de corpo, de voz e de sentido
Que a mim é dado como uma vaidade íntima e etérea
O meu desejo é o teu desejo
E moram todos
Na liberdade.

13 novembro, 2012

Insone




Há uma dança velada
Como um jogo de corpos 
Em um só corpo

Minha alma quase me escapa
Como um bicho assustado
Que necessita doma

Passo por passo
Me aproximo de mim mesma
Recorte de um tempo meu

Entre acordes da manhã
Recomeço meus compassos:
Sou minha própria bailarina


12 novembro, 2012

Arcabouço



Destilo a nicotina
entre meus dedos
tortos.

A vontade de roubar-te um beijo
é um desejo permanente,
dissimulado
entre um cigarro
e outro.

Parar de fumar agora seria o verdadeiro crime passional.

11 novembro, 2012

Canto da Sereia



Pelas margens do teu corpo
Meu abrigo em teu porto
Mansidão de véu anis

Ouvi pássaros cantarem
Vi teus pés me libertarem
De uma tarde fria e gris

Há um pouco de bondade
No coração da cidade
A canção do mar eu fiz

E no teu olhar cativo
Suportei o amor que vivo
E pensei em ser feliz

06 novembro, 2012

Do Viver Sonâmbula



Sonhar com o dia em que 
acordarei no teu beijo
O absinto das palavras
Amor, fel que embriaga
Um ranger de dentes atrás da porta
O sol nasce para quem abre os olhos
E vê que não está só.